sábado, 19 de julho de 2025

Por que as ciências sociais têm medo do mercado? China, vida universitária e coletivo

Lembro bem do intervalo entre as aulas de Ciências Sociais, vendo um grupo de colegas sentado no centro acadêmico, cada um imerso nos próprios pensamentos, mas tentando, ao mesmo tempo, compartilhar expectativas e incertezas. Ali, os discursos eram quase sempre os mesmos, como se dissessem: “Não venham para cá falar de mercado. Isso é coisa de liberal.” Era como se o mercado fosse um fantasma, uma negação absoluta do que o curso propunha. Claro, uma ilusão de quem escuta apenas o que quer do que estuda.

Quando cheguei ao final da graduação, percebi que muitos desses colegas, já com o “pé fora” da universidade, não sabiam qual passo dar. Tinham sido preparados para ler teoria, debater autores clássicos e produzir textos, como se, durante a graduação, a sociedade se resumisse ao ecossistema dos debates acadêmicos. Ninguém falava de como usar aquele conhecimento para enfrentar o mundo real. Não estou criticando professores nem apontando culpados. Isso certamente é fruto de elementos socioantropológicos mais profundos que operam dentro da própria academia brasileira. Estou apenas constatando que essa negação frontal do mercado, como algo que deve estar fora dos debates, deixava muita gente sem bússola quando se dava conta de que nunca esteve naquele universo em que problematizar o mundo bastava para se sentir útil. Todos precisaríamos, de alguma forma, trabalhar após a formatura — mas por que a ficha só caiu no final do curso?

Foi observando a China que percebi um contraponto poderoso. A força das relações de trabalho na sociedade chinesa é milenar e, no século XX, ganhou ares contemporâneos com a revolução socialista de 1949, sem, no entanto, perder seus sentidos específicos. As práticas do envelope vermelho e até as micro-relações sociais expressas nas trocas de presentes e demais relações entre amigos e parentes são elementos significativos que mostram como o dinheiro opera de forma diferente do que concebemos.

Em termos mais abrangentes, esses sentidos se refletem na não hierarquia rígida entre o “acadêmico” e o “mercado”. Lá, o mercado faz parte de um ecossistema mais amplo, orientado pelo interesse coletivo. O poder político concentra-se no Estado para garantir que iniciativas empresariais contribuam para o bem-estar social e que interesses particulares não se sobreponham aos públicos. Não se trata de subordinar a universidade ao capitalismo liberal (como poderiam imaginar), mas de reconhecer a importância de empreender dentro de uma lógica que privilegie o coletivo, de modo que todos os estudantes tenham perspectiva além do gargalo de oportunidades do meio acadêmico.

No nosso contexto sociopolítico, o mercado costuma ser associado ao individualismo liberal — daí a confusão entre mercado e capitalismo nas redes sociais, onde pessoas criam argumentos partindo de um princípio equivocado: o de que a própria existência do mercado seria uma invenção do capitalismo. Isso também respinga no ambiente acadêmico, onde ele é visto como força que contraria a “pureza” acadêmica das ciências sociais.

Mas e se reconfigurássemos termos como “empreendedorismo” e “carreira” dentro de um projeto de amplo alcance social? Em vez de ignorar esses conceitos, poderíamos incorporá-los ao currículo e às discussões, preparando alunos para dialogar com empresas, ONGs e poder público, sem demonizar palavras e práticas comerciais simplesmente por serem associadas ao princípio liberal — uma associação construída e, por isso, não natural, podendo ser reconstruída, ressignificada.

Na China, universidades promovem feiras de inovação social com apoio de governos locais — um contexto em que estudantes de antropologia provavelmente não seriam execrados por implementar métodos de campo em startups de impacto, por exemplo. É uma convivência quase espontânea — por estar calcada em sentidos sociais compartilhados e tidos como dados pela maioria — onde o saber acadêmico nutre não apenas a si mesmo, mas também o mercado. E o mercado, por sua vez, apresenta desafios concretos para a pesquisa, que pode ser financiada pelo Estado, somando a um corpo maior do conhecimento humano sobre o tema. Mas também voltada ao desenvolvimento do próprio mercado em termos concretos, pois emprego e qualidade de vida retornam em benefício da sociedade. Não há contradição, apenas a convicção de que a produção de conhecimento só faz sentido se também dialogar com demandas reais, em vez de atender apenas a um ecossistema autossuficiente de produção de conhecimento — que vive quase de uma autofagia intelectual, descolada do todo, ignorando os alunos e suas vidas futuras após o período de formação.

Este texto é um relato pessoal da experiência que vivi e vi nos meus colegas — principalmente aqueles que entraram jovens na universidade e se deslumbraram com o acolhimento de um ambiente que, no fundo, não lhes dá nenhuma opção além de tentar lutar para se incluir nele, mesmo sabendo que não há vaga para todos. Ele pode ser também um exercício de imaginação: e se deixássemos de lado a negação do mercado e começássemos a enxergá-lo como parte integrante de um sistema maior, centrado no coletivo? O “problema” não está na sua existência — mercado existe desde sempre — mas quando grupos o tomam como centralidade política, defendem interesses individuais de acúmulo e passam a sustentar pautas desvinculadas dos interesses públicos.

Talvez o maior ganho seja perceber que não precisamos escolher entre a sala de aula e o mundo lá fora. A sala de aula já está inserida no mundo social, ainda que aqueles que passaram anos vivendo dela tenham perdido essa percepção. 

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