A recente cúpula do BRICS no Rio de Janeiro reforçou um ponto frequentemente ignorado nas análises geopolíticas tradicionais: a disputa entre duas visões distintas do mundo, uma centrada na cooperação coletiva e outra no individualismo.
Essa diferença, ainda que muitas vezes sutil, aparece claramente nas posturas adotadas pela China e pelo Brasil, especialmente durante o governo do presidente Lula.
No início deste mês, a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Mao Ning, reforçou o compromisso chinês com o fortalecimento da cooperação multilateral entre os países do Sul Global. Ao enfatizar a importância da plataforma BRICS para a promoção do desenvolvimento comum e da governança global equitativa, ela destacou um princípio fundamental da cultura chinesa: o entendimento de que a força de um grupo vem da solidariedade interna e da colaboração mútua.
Quem tem contato com chineses e com a cultura chinesa há muito tempo sabe que esse pensamento é algo presente na vida cotidiana, o que reflete naturalmente nas decisões políticas e diplomáticas. A própria expressão 相互帮助 (Xiānghù bāngzhù), que significa literalmente ajuda mútua, é um dos exemplos mais cotidianos e expressivos.
Ao contrário do que algumas análises feitas por ocidentais (e por países simpatizantes) podem sugerir, a defesa chinesa de um desenvolvimento coletivo não é simplesmente uma estratégia para obter vantagens unilaterais. É expressão genuína de um elemento sociorelacional mais profundo, que compreende que avanços reais e duradouros só podem ocorrer de forma conjunta e compartilhada.
Essa abordagem, no entanto, embora facilmente compreendida como um elemento moral, não carrega necessariamente tais intenções. Chamo atenção aqui para um elemento que está presente na visão de mundo em diversos contextos não ocidentais, mesmo que a expressão da ideia coletiva ocorra respeitando especificidades locais. Ou seja, ela reflete práticas sociais internalizadas e comuns na vida cotidiana chinesa.
O presidente Lula tem adotado uma postura semelhante em seu governo, tanto internamente, em políticas públicas que valorizam a inclusão e o desenvolvimento social coletivo, quanto na esfera internacional, promovendo um multilateralismo mais robusto. Sua posição frente ao BRICS reforça essa visão, o que se alinha à China na defesa da solidariedade internacional e na construção de uma ordem mundial baseada na justiça social e no desenvolvimento equitativo.
Exemplo disso é a firme posição chinesa de apoio a Cuba frente às sanções unilaterais impostas pelos Estados Unidos. Ao defender que cada país deve seguir um caminho adequado às suas próprias condições e realidades, a China evidencia seu respeito às particularidades nacionais e à soberania dos povos, uma atitude que encontra ressonância direta nas falas e ações do governo brasileiro nos últimos anos.
Essa perspectiva também revela a reação de alguns setores influenciados pelo pensamento ocidental, que frequentemente interpretam tais posturas cooperativas como “ameaças” ou estratégias ocultas de dominação. Curiosamente, se assemelha à dinâmica interna do Brasil, no que diz respeito às falas dos grupos mais críticos ao Lula.
O que está em jogo aqui não são apenas ideologias políticas, mas visões radicalmente diferentes de mundo que transcendem a ideologia política engessada em direita e esquerda, embora sejam a sustentação de escolhas políticas significativas, expressas nessas ideologias. Enquanto o individualismo liberal ocidental desconfia do altruísmo genuíno nas relações internacionais porque opera em um sentido de que o outro, por natureza, seria seu opositor, a mentalidade coletiva chinesa – e agora também a brasileira sob Lula – enxerga a colaboração não como fraqueza, mas como a única base sólida para um progresso real e duradouro.
Vale acentuar que, justamente por não ser uma escolha moral (mesmo quando justificada dessa forma por alguns atores políticos), não existe garantia de que tal visão de mundo esteja já consolidada, sustentada em uma cultura engessada e imutável. Ela precisa ser constantemente reafirmada para que o movimento político ganhe esse aspecto. Tal como há anos, ou melhor, séculos, é feito com a visão de mundo liberal que coloca o "todos contra todos" como uma condição natural da existência humana. Considerando a dinâmica onde a premissa das relações dominantes já se estabeleceu como norma natural, o coletivismo ressurge como uma visão própria de mundo, mas se sustenta na dinâmica relacional quando acionada de forma deliberada.
Deixo você com esse vídeo onde uma chinesa jovem foi perguntada sobre as diferenças entre os sonhos dos chineses e dos estadunidenses. Ele expressa bem o que foi argumentado aqui.
Nesse cenário, a cúpula do BRICS realizada no Brasil em julho não foi apenas um evento diplomático, mas uma ilustração viva da coexistência de múltiplas visões sobre o papel dos países no mundo. Mais do que economia ou disputas políticas, foi o palco onde duas abordagens culturais profundas emergiram com clareza.
Até que ponto estamos preparados para reconhecer e valorizar perspectivas que transcendem nossa própria socialização?
Abraços.
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