quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Xondaro Guarani: an indigenous martial performance

XONDARO GUARANI:UMA PERFORMANCE MARCIAL INDÍGENA
(Article)

Intratextos
v. 12 n. 1 (2021): Dossiê do XVII Seminário Discente do PPCIS (2° volume) 

Wallace Ramos de Figueiredo (Nino Rhamos)

Submitted: 2021
Published: 2023

Download: PDF

RESUMO

Este artigo aborda as características que definem as artes marciais como práticas corporais que transformam a subjetividade do praticante e interferem em sua concepção do self e em sua atuação no círculo social. O estudo utiliza como exemplo o xondaro, uma prática performática dos Guarani que combina dança e luta. A partir da análise de discurso do documentário Xondaro Mbaraete, da teoria de Goffman sobrea interação e o paradigma da corporeidade de Csordas, foi abordada a ideia de  performance marcial, fundamentada nos elementos que fazem do xondaro um exercício de transformação da subjetividade do praticante e ressignificação do Outro. O artigo também se baseia em pesquisas anteriores sobre a prática xondaro e em experiências de campo na aldeia Guarani Tekoa Pyau em São Paulo.

Palavras-chave: artes marciais; transformação da subjetividade; práticas corporais

ABSTRACT

This paper explores the defining characteristics of martial arts as bodily practices that transform the subjectivity of fighters and affect their perception of self and performance in social contexts, within the field of anthropology.  Specifically, the study examines 'xondaro,' a performative practice of the Guarani that involves a combination of dance and combat.  By analyzing the discourse in the documentary 'Xondaro Mbaraete,' utilizing Goffman’s theory of interaction and Csordas’ paradigm of embodiment, the paper explores how xondaro isused to transform the fighter’s subjectivity and re-signify the Other. The paper also draws upon previous research on the xondaro practice, as well as the field experiences in the Guarani Tekoa Pyau village located in São Paulo.

Keywords: martial arts; transformation of subjectivity; body practices.

INTRODUÇÃO

Artes marciais, no seu sentido mais “original”, são práticas corporais que possuem determinadas características específicas, atreladas principalmente às diversas formas de transformação da subjetividade do praticante que vão interferir na concepção do self e em maneiras de atuação no círculo social; ou como na definição de Cynarski (2015, p. 34), ela é uma categoria histórica de métodos perfeitos de lutas de combate, com ou sem armas, que possui uma esfera transcendente, seja de um elemento espiritual ou relacionado a um desenvolvimento pessoal, diferentemente das artes de luta – fighting arts.

Segundo sua definição, são quatro os pontos fundamentais que servem para entendermos os limites que diferenciam uma arte marcial de outras práticas de combate: uma filosofia original, ou algo parecido como um código de ética; uma relação com a conduta do praticante; uma relação próxima com os sistemas religiosos; uma ênfase na cultura física atrelada ao desenvolvimento da personalidade e por fim, uma prática que se refere à existência de um local específico para a atividade, momentos específicos, assim como cerimônias ligadas a uma espécie de rito de passagem, tanto para o crescimento pessoal quanto para uma mudança de posicionamento na hierarquia social (CYNARSKI, 2012; CYNARSKI, WOJCIECH; YU, JONG-HOON; WARCHO, 2015).

Assim, nesse artigo busco observar alguns elementos do xondaro que o caracteriza com o que eu chamo de performance marcial e com sua especificidade em lidar com o aspecto agonístico da prática. Portanto, na primeira parte apresentarei uma descrição sobre o que é o xondaro; em seguida abordo a ideia de performance marcial fundamentada na teoria de Goffman sobre a interação. Por fim apresento os elementos que fazem do xondaro 3 um exercício de transformação da subjetividade do praticante e ressignificação do Outro, utilizando o paradigma da corporeidade de Csordas.

Como método utilizarei a análise de discurso do filme documentário Xondaro Mbaraete – A Força do Xondaro, produzido através do projeto Pesquisadores Guarani no Processo de Transmissão de Saberes e Preservação do Patrimônio Cultural Guarani, realizado entre os anos de 2009 e 2011 por meio da parceria entre o Centro de Trabalho Indígena (CTI), a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), a Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvi-mento (AEDID) e o Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN) (PESQUISADORES GUARANI, 2013, p. 6); relacionando minha argumentação com pesquisas anteriores sobre a prática. Vale complementar que utilizo também minhas experiências de campo entre 2018 e o primeiro semestre de 2019 na aldeia Guarani4 Tekoa Pyau em São Paulo.

O CORPO XONDARO

O corpo no “senso comum” é tratado como uma forma dada onde o self habita. Porem, apesar das infinitas possibilidades de formas de expressão dentro do universo humano, existem outras concepções. Mauss (MAUSS, 2006) diz que antes de qualquer outro, ele – o corpo – “é o primeiro e o mais natural objeto técnico, e, ao mesmo tempo, meio técnico do homem”, fazendo referência à técnica como um ato tradicional eficaz que não se diferencia de um ato mágico, religioso e simbólico. Ao narrar a cerimônia da caça ao opossum5 (MAUSS, 2003, p. 406) ele deixa clara a relação entre os procedimentos mágicos e as técnicas de caça, ou seja, “a crença na eficácia não apenas física, mas oral, ritual de certos atos. (. . . ) O momento psicológico capaz de associar-se a um ato que é antes de tudo uma proeza de resistência biológica.”(MAUSS, 2006, p.407). Rodriques (1979, p. 62) explica bem o poder do meio em que vivemos de imprimir, ou melhor, de marcar nesse corpo, toda uma estrutura de simbolismos e valores; fazendo deste, não um “objeto” existente em si, que surge como algo sui generis para interagir no meio, mas como um “objeto” fruto deste meio. Nesse sentido pensar o corpo também é pensar todo o impacto que diversas transformações sociais exercem neste corpo. É compreender que o corpo também pode ser entendido a partir das relações sociais construídas. Por outro lado, seria superficial pensar no corpo como uma “massa de modelagem inanimada”. Para Gertz (2015, p. 35), as alterações que a estrutura biológica do corpo humano sofreu até os dias atuais não ocorreram por simples acaso histórico, tendo as práticas culturais influenciado neste desenvolvimento.

Quando Ortner (2006, p. 54) coloca a intencionalidade ativa como tendo um papel forte na caracterização da agência, mesmo que não necessariamente esta possa acontecer de forma consciente; outro ponto se apresenta para a reflexão sobre o corpo, pois muitos agenciamentos possuem o corpo como meio de atuação; e nesse sentido, o corpo não mais passa a ser entendido como uma espécie de refém do meio social, mas também como um ator transformador.

Tanto na comunicação verbal quanto na não verbal, a expressão corporal possui um papel fundamental, pois um universo de significados abrange tanto um quanto outro, comunicando de diferentes maneiras, subjetividades particulares ou coletivas. Essas formas de comunicação que me refiro, seguem o mesmo sentido em que Artaud(2004, p. 40) define como uma “forma singular de experiência intelectual”, onde seria necessário abdicar tanto do texto quanto da palavra como ponto central da comunicação, dando espaço para que outros elementos ganhem posição neste processo6. Considerando todos os elementos dessa “metafísica em atividade” (Ibid.), uma compreensão sobre as atividades relacionadas ao corpo, assim como todos os processos derivados dele – gestos, expressões, sons, dentre outros – começa a ganhar outra perspectiva, muito mais aprofundada e significativa. Pensar essa relação corporal na prática do xondaro nos obriga a entendê-lo minimamente, antes de qualquer análise.

Xondaro basicamente representa uma prática para guerrear, porém, os próprios Guarani não possuem uma definição literal, pois a compreensão real viria da experiência, da proximidade com os praticantes, do convívio cotidiano, assim como mostra os pesquisadores Guarani7(2013, p. 28). Ao falar sobre os cursos de formação que foram realizados em aldeias de São Paulo, Bregalta(2017, p. 57) fala da importância para o praticante de xondaro da relação com avôs, avós e conhecedores, no que diz respeito à escuta aos mais velhos para o fortalecimento da cultura.

Praticado em forma de dança por crianças, mulheres e homens8 – sendo muito comum inclusive a utilização do termo dança xondaro – o xondaro se faz com a participação de músicos que tocam instrumentos como o violão (mbaraka), rabeca (rave’i), chocalho (mbarakamir˜ı) e tambor (ang’apu) (PESQUISADORES GUARANI, 2013, p. 30). Mas apesar da relação que existe com os instrumentos musicais, é importante destacar que ambos, tanto a dança quanto os músicos, exercem uma influência constante no dinamismo da prática (BREGALDA, 2017, p. 107), o que nos impede de confundir a palavra dança do termo dança xondaro, com o mesmo sentido da palavra dança em outros contextos não Guarani9. Os instrumentos possuem uma preparação específica para produzir um tipo de som característico (BREGALDA, 2017, p.80). Os tocadores são específicos para cada instrumento, e quando começam a tocar logo os xondaro10 vão se organizando em forma de roda lentamente, e dando gritos de guerra à medida que aumentam a força dos passos (Ibid).

O mestre xondaro (ruvixa11) pode ter um instrumento12 que faz uma espécie de condução, ao mesmo tempo em que cria obstáculos por onde os praticantes precisam passar (PESQUISA- DORES GUARANI, 2013, p. 30). A dança pode ser dividida, para melhor entendimento, entre dois momentos, o primeiro seria o momento em que os praticantes seguem o ruvixa e precisam, em certa medida, imitá-lo (L. KESSE, 2017, p. 83); em seguida há o momento em que o ruvixa interrompe sua dança em círculos e se posiciona de maneira a criar obstáculos para eles, por meio de rasteiras ou ataques (L. KESSE, 2017, p. 84). Existem algumas formas utilizadas para chamarem outros para o grupo, o líder pode gritar: “mamo xerovai rã?” (“onde está meu adversário?”), e quem disser “Apy” (“Aqui”) se coloca no círculo para dançar (PESQUISADORES GUARANI, 2013, p. 34). O mestre pode também simplesmente apontar para alguém e pedir para entrar na roda, pode provocar quem ele quer que seja o adversário, em seguida ele ataca da forma que desejar, sendo preciso o praticante xondaro ter agilidade para escapar. Dessa forma eles são treinados (Ibid.).
       
A relação entre os praticantes xondaro e a aldeia, se da de forma que cada um possui um papel definido, assim como uma posição e função específica na comunidade. Aspectos comportamentais atrelados a valores morais e funções práticas surgem como uma espécie de poder regulador do grupo, mas que está distribuído em dois tipos de xondaro, o xondaro porã e o xondaro poxy (PESQUISADORES GUARANI, 2013, p. 34). O xondaro porã possui uma função mais ligada a uma ajuda no dia a dia da comunidade, ele precisa estar atento a tudo que ela precisa e fazer atividades como: trazer lenha, caça, pesca, dentre outras; ele pode também dar conselhos aos mais novos sobre a conduta correta com os mais velhos, ensinar respeito e qualquer outra educação, no que corresponde à formação moral dos mais novos (Ibid.). O xondaro poxy já possui uma função mais relacionada ao conflito em si, aos problemas da aldeia, evitando conflitos como brigas, violência contra mulheres e etc. Ele tem o aval para interferir e solucionar todas essas questões (Ibid). Enquanto o xondaro porã é mais ativo, conversa com todo mundo independente das diferenças, o xondaro poxy é mais quieto, mais reservado (PESQUISADORES GUARANI, 2013, p. 35).
        
A espiritualidade é apontada como definidora da origem da prática xondaro. Uma narrativa que se aproxima da origem mística sobre o surgimento do xondaro é encontrada no livro A Força do Xondaro (2013, p. 16) e também nos meus relatos de campo, onde diz que o xondaro “é uma das formas de se estar em contato com Nhanderu kuery”. Tal relação do xondaro com nhanderu kuery, também foi apontada por Bregalda (2017, p. 87).

A PERFORMANCE MARCIAL

Pensar em uma prática marcial como uma prática performática, é antes tudo pensar na relação em que essa prática tem com diversos elementos que dão sentido a ela, tanto sua interação e significado dentro do grupo, quanto o espaço onde se pratica e as relações envolvida. Tudo que estiver relacionado a ela possui uma importância significativa para o entendimento do próprio evento.

Langdon (2006, p. 17), quando aborda o paradigma da performance, apresenta cinco qualidades inter-relacionadas que formam um eixo entre os diversos usos do termo. O estudo sobre a performance marcial que apresento neste trabalho segue próximo da linha do que a autora chama de um Engajamento corporal, sensorial e emocional, mais precisamente, buscando problematizar análises dicotômicas que envolvem o corpo e outros aspectos subjetivos. A citar:

Engajamento corporal, sensorial e emocional: Como é característico na antropologia contemporânea, tanto quanto em outros campos intelectuais atuais, o paradigma do corpo e “embodiment” (corporificação) (Csordas, 1990) também faz parte das análises de performance, como demonstram particularmente bem as pesquisas sobre a eficácia terapêutica da performance, uma discussão que visa entender a possibilidade de transformação fenomenológica no nível mais profundo do corpo, rejeitando uma divisão cartesiana de experiência, que separa o racional do emocional e do corporal (Ibid.:).

Outro exemplo da importância dessa relação com elementos aparentemente “fora” do evento, é apresentado por Goffman (2002, p. 29) quando explica as representações que ocorrem nos aspectos cênicos13 durante a interação. Ele cita que

Primeiro, há o cenário, compreendendo a mobília, a decoração, a disposição física e outros elementos do plano de fundo que vão constituir o cenário e os suportes do palco para o desenrolar da ação humana executada diante, dentro ou acima dele. O cenário tende a permanecer na mesma posição, geograficamente falando, de modo que aqueles que usam determinado cenário como parte de sua representação não possam começar a atuação até que se tenha colocado e devam terminar a representação ou deixa-lo. Somente em circunstâncias excepcionais o cenário acompanha os atores.

Sobre a relação com a plateia, e seu aspecto intrínseco ao significado simbólico do evento performático, Goffman (2002, p. 89) ainda cita:

Se tratamos uma interação como um diálogo entre duas equipes, às vezes será conveniente chamar uma delas de atores e a outra de plateia ou observadores, deixando de lado momentaneamente a ideia de que a plateia também estará apresentando uma representação de equipe.

Considerando a abordagem dos dois autores sobre os aspectos performáticos, diversos elementos corporais e sonoros são ativados durante o evento marcial, para que ele ganhe o sentido esperado. Isso ocorre tanto como um processo de comunicação através de uma linguagem não necessariamente verbal – como falei anteriormente –, quanto no sentido que Langdon (2006, p. 8) cita: “um ato de comunicação, mas como categoria distingue-se de outros atos de fala pela sua função expressiva ou poética”. Porém, no caso do evento performático estudado aqui, por se tratar de uma performance marcial, existe uma característica fundamental a se considerar, que é a possibilidade de “aplicação” dos movimentos do evento, em uma situação futura de “risco”; ou melhor, em outro evento performático, com uma futura plateia. Isso faz com que a performance marcial aconteça em dois momentos. O primeiro seria a prática cotidiana, onde o evento performático acontece dentro de uma rotina “sem conflitos”, em um ambiente controlado. Nesse momento é trabalhado tanto a preparação para o momento da disputa (o momento de luta), como a relação com os aspectos espirituais e as regras de conduta que se tornam características da personalidade do praticante. O outro momento, seria o momento da disputa, do “risco”, da aplicação real dos elementos trabalhados anteriormente.

Os dois momentos são importantes e merecem toda atenção, diria até que eles não existem desassociados, mas um sempre considerando o outro como motivador de ação. Portanto, uma das especificidades da performance marcial é a existência de dois eventos performáticos associados, um motivando o outro; a outra, é o fato de envolver a relação com um Outro muito bem definido enquanto “inimigo”. Em outros eventos performáticos, mesmo que associados, esse Outro ganha significados diferentes, como, por exemplo, nos ensaios de uma peça de teatro e o dia da apresentação. Enquanto na performance marcial existe uma inspiração agonística relacionada à motivação da prática, no teatro a companhia normalmente não deseja destruir a plateia.

Considerando os argumentos de Goffman (2002, p. 29) sobre a representação que acontece na interação com o Outro, ou seja, com a plateia, onde ele diz que nesse momento é utilizado um “equipamento expressivo de um tipo padronizado ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante sua representação”; minha investigação, portanto, precisa, antes de qualquer coisa, buscar entender este equipamento que Goffman se refere, entender o que acontece no momento de uma prática de arte marcial onde a plateia já está determinada como um ator fixo; que em certa medida, é a razão desta mesma prática existir, seja em qualquer dos dois momentos que citei. Preciso investigar de que maneira o praticante entende esse Outro, de que forma seu significado surge em um contexto que vai determinar o objetivo da prática e a performance em si. 

Com isso, meu interesse se volta então para os pontos característicos da prática que revelam em que medida a relação com o Outro é alterada; ou melhor, em que medida o habitus14, como um princípio inconsciente e coletivamente inculcado (CSORDAS, 2008, p. 107), pode ser transformado. O objetivo é compreender os elementos que atuam em um estado próximo do pré-objetivo de Marlon-Ponty (CSORDAS, 2008, p. 105).

O RETORNO AO PRÉ-OBJETIVO

Aqui busco apresentar o resultado de minha investigação sobre o xondaro, considerando os argumentos apresentados nas partes anteriores. Conforme o conjunto do material analisado, pude perceber diversos elementos característicos dessa prática que o tornam distanciada da referência que normalmente se tem de uma arte marcial. Paiva (2015, p. 19) apresenta uma dessas referências que, de certa forma, esta plasmada no imaginário comum quando se escuta falar sobre alguma prática de combate quando ele diz que “boa parte dessas atividades passou a ter características de jogos com regras, que atraíam o público por seu caráter espetacular, como foram, por exemplo, os jogos disputados pelos gladiadores em Roma”. Falar de tais práticas dessa forma, com uma certeza sobre a maneira com que elas aconteciam nos primórdios é um tanto generalizante. Existem diversas práticas de combate espalhadas por vários cantos do mundo, e que surgiram em épocas completamente diferentes e em sociedades com características diferentes; portanto esse tipo de abordagem acaba por deixar de lado diversas especificidades inerentes a cada prática, e faz com que seja comum pensar em uma explicação bem objetiva para uma prática que tem como fundamento, uma relação de disputa e poder com sua plateia; porém o que pude perceber no xondaro é que a forma com que o praticante entende e atribui significado a esse Outro é muito mais determinante para o momento da disputa, do que um trabalho de treinamento corporal, no sentido em que Paiva apresenta. Não que tenha sido abolido o aspecto marcial, muito pelo contrário, a definição de um inimigo, a subjetividade envolvida nos processos de objetificação que possibilitaram que este Outro exista como alguém que precisa ser “derrotado”, é o elemento fundamental para que, como “tática de combate” – utilizei esse termo por falta de um que descrevesse melhor –, o xondaro utilize recursos que busquem a ressignificação15 deste Outro, ao invés de um reforço na objetificação já consolidada, onde a lógica seria de eliminar o inimigo sem interferir no seu significado. Ou seja, o xondaro pode ser entendido como um tipo de treinamento que visa o praticante atingir a leveza16 que eles falam, modificando a forma com que a luta acontece. É como se surgisse de um “novo Outro” possibilitando a leveza.

Uma questão importante para podermos dar continuidade aos elementos que fazem do xondaro uma estratégia específica de lidar com o “inimigo”, ou seja, com as características que levam a esse processo de retorno ao pré-objetivo de Marlon-Ponty (CSORDAS, 2008, p. 105); é que não podemos confundir esse retorno com uma pura relativização. Quando Csordas argumenta sobre o paradigma da corporeidade, ele está se referindo a um processo que é anterior ao processo de objetificação e não uma forma de atribuir a um objeto um novo significado narrativo. A relativização não passa pelo âmbito da percepção corporal, o que seria o ponto anterior ao processo de objetificação, mas se mantém em uma mudança no âmbito racional, considerando novos aspectos, antes ignorados, sobre tal assunto ou pessoa; o que poderia resultar em uma mudança no julgamento de valor, ainda compreendido através de uma “racionalidade” específica. Ter consciência dessa diferença é fundamental para compreendermos de que maneira os exercícios do xondaro atuam no processo de retorno ao pré-objetivo, tendo como elementos, aspectos não discursivos, do âmbito da sensação, da percepção; sua principal característica. Esse ponto sobre a percepção como elemento pré- objetivo, é demonstrado por Csordas (CSORDAS, 2008, p. 106) no trecho:

Merleau-Ponty quer que nosso ponto de partida seja a experiência de perceber em toda a sua riqueza e indeterminação, pois, de fato, não temos objetos anteriores à percepção. Pelo contrário, “nossa percepção termina nos objetos”, o que equivale a dizer que os objetos são um produto secundário do pensamento reflexivo; no nível da percepção, não existem objetos, nós simplesmente estamos no mundo. Merleau-Ponty quer, então, perguntar onde a percepção começa (se ela termina nos objetos), e a resposta é no corpo. Ele quer recuar do mundo objetivo e começar com o corpo no mundo. Isso também deveria ser possível para o estudo do sujeito concebido nos termos de Hallowell, como um objeto entre outros.

Nesse sentido é que entendo o xondaro como uma prática que busca sempre a tentativa de “reconstrução” do mundo já objetificado, enquanto se incentiva por estímulos sensoriais, a percepção do indivíduo; evitando, por outro lado, uma lógica sistemática de movimentos ou discursos mais elaborados – o que estaria próximo de uma aula de defesa pessoal onde uma espécie de sistema é transmitido ao aluno. É como se através do xondaro sempre se buscasse o lugar anterior aos “objetos”, o indeterminado de Marleau-Ponty, possibilitando assim uma nova objetificação do Outro, uma alteração das estruturas objetivas que geram práticas, o habitus (CSORDAS, 2008, p. 110); ou a leveza almejada pelo xondaro quando se retorna a esse novo “Outro”.

Um dos exercícios praticados pelos xondaro que considero importante para esse trabalho, e que estimulam o recuo do mundo objetivo citado por Csordas no trecho acima, está relacionado a um tipo de elemento subjetivo, “o caminho do coração” (BREGALDA, 2017, p. 236). O termo aparece possui um caráter definidor de um tipo de verdade sempre atribuída à tomada de decisão em uma situação. Os Pesquisadores Guarani (2013, p. 55) quando falam dos elementos que motivam a prática do xondaro, citam o coração como elemento determinante, assim como um reforço a ideia que apresentei anteriormente sobre um tipo de comunicação que está além da palavra. Nesse sentido, Bregalda (2017, p. 25) vai dizer:

[. . . ] sentir dentro de si, é uma forma de agradecimento sem usar a fala, isso mostra que nós não usamos só a fala e sim mostramos o que sentimos no coração. Essa é uma forma de comunicação que há entre nós, uma forma de expressar o que sentimos.

Ao tratar do corpo como lugar onde se dá uma aprendizagem sensível, Bregalda expõe sua experiência de campo com os Mbya Guarani, e constatou a ênfase no que “traduzem como coração – como a morada do nhe’e (alma-palavra) – e não concebem separadamente o pensar e o sentir, embora tenha percebido uma ênfase neste último em diversos momentos”.

Nesse sentido, o termo coração pode ser entendido como um retorno aos aspectos relacionados à percepção, a partir do momento em que Csordas (2008, p. 102) atribui como tendo sua origem no corpo, enquanto sujeito da cultura, o retorno ao sensível estaria relacionado às práticas corporais não sistematizadas em regras, técnicas ou formas padrão. O “sentir o coração” é a referência principal para poder atingir um estado anterior à fala, e pode ser entendido como uma sugestão de qual é o sentido subjetivo “certo” para o praticante seguir. É como se o praticante precisasse, em um primeiro momento, “seguir seu coração” para atingir o pré-objetivo, o indeterminado e assim compreender de uma forma diferente o mundo objetificado. Esse movimento que carrega a intenção do praticante para elementos subjetivos, por si, exige uma abstenção de algum sistema lógico, seja ele linguístico ou técnico corporal. O conceito de nhe’e citado por Bregalda (2017, p. 25) está relacionado a este movimento, pois apesar da alma-palavra existir como unidade, se o mundo já está objetificado, o esforço viria do movimento contrário, para o que seria a alma, ou no sentido em que Csordas fala do indeterminado de Ponty, o corpo sensível.

Já nos primeiros momentos do filme Xondaro Mbaraete – A Força do Xondaro, uma das falas se refere a como praticante Pedro Vicente Karai, da Aldeia Tenode Porã de São Paulo, percebeu a prática na infância. Sua declaração mostra que ele observava os outros dançando e entendeu que deveria participar quando sentiu no coração. Em suas palavras:

[. . . ] senti dentro do meu coração. Só de ficar presenciando senti a vontade de ser igual, de querer fazer tudo aquilo também. Os mais velhos não falavam: levanta você também, vem dançar. Não falaram assim para mim. Eu que fui sozinho no meio dos mais velhos, e não sabia de nada no começo. (2”28)

Por essa fala, podemos perceber o valor que os praticantes dão ao caráter espontâneo, quando até mesmo a escolha de quem vai praticar se dá por ele mesmo, em algum momento do processo de socialização na infância. 

Outro ponto relevante que demonstra o retorno ao pré-objetivo é a importância da música no momento da prática do xondaro, porém o papel da música não é de condutor do ritmo simplesmente, mas de definidor do nível de entrega sensorial que os praticantes têm no momento.

Segundo Antonio Vogado, da Aldeia Koenju, em São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul:

Quando o ritmo permanece lento, a gente não consegue alcançar o auge da dança, e nós falamos: acelere mais!. Isso significa que a música vai se adequando ao nosso ritmo da dança, e a gente consegue alcançar um bom estado de dança. Dançamos bem certinho. Se não for dessa forma a dança não fica equilibrada. E como a gente fala, não ficamos animados com um ritmo que permanece lento. Quando a música está no ritmo certo, nosso coração se fortalece, e a partir disso a gente consegue alcançar a essência da dança. Caso contrário, não acontece. Não basta estar motivados, o ritmo precisa estar certo. Então a gente vai dançar direitinho. (4”28)

É esse “estado de dança”, que me refiro quando digo que o nível de entrega sensorial está associado ao ritmo tocado, e não é só o músico que determina a condução, ele acontece em conjunto com os próprios praticantes. Nesse sentido, há uma diferenciação de um tipo de dança onde a música já está estabelecida e o dançarino segue sua determinação rítmica. É o próprio mestre ruvixa que determinam se a música está sendo suficiente para atingir um nível de diminuição do estado mais racional, para poder aflorar estados corporais mais voltados à percepção, ao estado pré-objetivo. Assim como no depoimento do Pedro Vicente, a palavra coração mais uma vez é utilizada como o ponto de referência do ideal atingido. Nesse sentido, os instrumentos musicais possuem uma função importante, não só pelos aspectos característicos do som (no que se trata de escalas musicais utilizadas e afinações próprias), mas todo processo de preparação para se tornarem instrumentos próprios do ritual (BREGALDA, 2017, p. 81). Porém, esse estado de dança é atingido não apenas pela relação com a música, toda uma ambiência é oferecida quando o xondaro é praticado dentro da casa de reza (opy), assim como Bregalda (2017, p. 112) cita em seu trabalho:

Lembro-me da sensação de entrar na opy e ser envolvida pela película de fumaça que tudo envolve no seu interior e que diversas vezes faziam arder e lacrimejar os olhos, quase impossibilitando de os manter abertos. O cheiro da fumaça e do fumo também vai gradualmente se tornando familiar aos sentidos, a pele se impregnando dele e da atmosfera que se cria no interior da casa. A determinada altura, os cheiros e gostos que estão no ar são aqueles mesmos que estão na pele, e vice-versa, assim como a textura, umidade e temperatura da terra e dos pés descalços que se estranham e depois confundem.

O mestre xondaro ruvixa responsável por conduzir a roda, em muitos momentos está utilizando o popygua, sendo duas varetas presas uma na outra por uma pequena corda em uma das pontas, utilizadas para fazer um som muito característico, pequenos estalos quando se chocam. Sua utilização muitas vezes é feita próxima ao chão, como se simulasse alguma ameaça vinda da terra, e os praticantes que estão no círculo em estado de dança precisam se esquivar. O significado dessas varetas está muito além da simples instrumentalização. Bregalda (2017, p. 75) cita o popygua como sendo utilizado tanto durante as danças como durante as falas e curas. Em momentos que antecedem as falas ou no próprio ritual em que nenhuma outra ação está se desdobrando no centro da opy e que o silêncio ou apenas o burburinho das pessoas preenche o espaço, também é possível escutar o som do popygua.

No trecho, podemos perceber sua relação com a linguagem, ou a substituição de uma linguagem falada por elementos sonoros que provocam estímulos sensoriais, transformando aspectos subjetivos do praticante, relacionados à percepção. Segundo o próprio depoimento do Antonio Vogado no filme: “ajuda a estar bem espiritualmente”, dando mais “disposição pra dançar o xondaro”. Ele completa:

O Popygua é da nossa cultura, eu sempre tenho comigo. Quando eu vou longe da aldeia, eu nunca deixo ele. Vou falar porque não deixo ele. A tarde, quando entramos nacasa de reza, estalamos o Popygya para fazer com que as crianças se sentem. Às vezes, no final do dia, não estamos bem espiritualmente. Se alguém chega à casa de reza se sentindo fraco espiritualmente, pega o cachimbo, acende ele e estala o Popygua. Fazendo assim, os espíritos maus não nos incomodam. É um inimigo deles. Isso é muito bom pra nós, devemos saber usá-lo bem. Eu uso ele com muita fé. Quando vou deitar, estalo ele pra dormir bem. Assim devemos usar ele. Através dele eu ganho confiança. Ele me da força espiritual e coragem. Ele é meu ajudante espiritual. (19”19)

Podemos perceber na sua fala alguns pontos que demonstram bem o caráter sensorial despertado na utilização do popygua ou na recomposição a um estado de espírito anterior às dinâmicas da vida objetiva, do habitus (quando ele diz na citação anterior que no final do dia pode ser utilizado caso não estejam bem espiritualmente). Todos esses momentos em que o popygua é utilizado, podem ser interpretados como uma forma de se retornar ao estado pré-objetivo, a um nível em que a percepção é mais forte do que a objetificação do mundo já consolidada. Nesse sentido, o popygua funciona como uma espécie de gatilho para esse estado anterior, um estado de percepção, sensorial; tanto nos momentos fora da performance xondaro, onde o mestre o utiliza para si, quanto dentro da performance, onde o utiliza para despertar no praticante o mesmo estado. Essa função do popygua pode ser percebida no sentido em que Bregalda (2017, p. 77) o cita como algo que está relacionado a aspectos que os aproximam de uma extensão do corpo, servindo também para comunicação com os deuses, responsável pelo estado de leveza e concentração.

Assim como nos mitos de criação, em que o bastão-insígnia é tomado como emblema do poder de Nhanderu, a partir do qual ele desdobrará outras criações, este e os demais objetos rituais utilizados pelos Mbya também mobilizam capacidades agentivas e de comunicação, que os aproximam das divindades e ativam em seus corpos estados de concentração, disposição, leveza, alegria e força. Nesse sentido os instrumentos, cantos, danças, adornos e demais objetos não apenas se constituem em meios de comunicação com as divindades, mas o próprio corpo é o lugar através do qual se experencia e presentifica um devir divino. Este corpo complexo envolve os objetos como extensão dele próprio, os movimentos engendrados na relação com os objetos, com os demais corpos participantes do ritual no espaço tempo da opy, onde se fazem presentes e se fazem sentir os nhee kuery descidos das moradias divinas, onde a presença, o conhecimento e as capacidades divinas se fazem sentir corporeamente (BREGALDA, 2017, p. 77). Nessa relação de ligação com o próprio corpo, o efeito provocado pelo som do popygua se remete ao significado do próprio colapso entre corpo-mente de Csordas, fazendo dele um instrumento fundamental que contribui para o retorno ao pré-objetivo durante a prática.

Por fim apresento uma análise mais sobre a forma com que o xondaro é mostrado no documentário, e menos dos discursos. Muitas das imagens da prática acontecem dentro de uma casa, que, baseado nos depoimentos do próprio documentário e dos meus relatos de campo, a casa de reza. Existem outras imagens da prática feita em ambientes completamente diferentes, como uma manifestação de rua e grandes áreas ao ar livre dentro da aldeia, portanto, não é uma regra. Nos locais fechados, o ambiente é escuro, os integrantes (ao som da música) estão completamente entregues à performance, dançando em movimento circular constante. Em um momento o condutor seleciona um deles para compor uma dupla no centro da roda, onde acontece uma espécie de treinamento. Todo esse processo ocorre sem diálogos. Eles não são chamados pelo nome e tampouco é feito um pedido formal para compor a dupla; os únicos sons que acontecem são gritos ou frases mais soltas que interagem no nível da percepção, do sensorial, do pré-objetivo.

Com a dupla formada, o condutor faz movimentos que parecem aleatórios, porém não no sentido de um aleatório feito sem propósito; pelo contrário, o aleatório se revela com a intenção de se fugir de uma sistematicidade de movimentos e tentar se aproximar, ou mesmo estimular, o lado perceptivo do outro praticante. Nesse sentido, fica clara a diferença entre as práticas de artes marciais mais comuns, que estão sempre associadas a uma técnica específica, e o xondaro. Não que eu acredite que ambas estejam desprovidas desses dois aspectos, tanto o xondaro quanto qualquer outra prática corporal, em algum nível possui um caráter técnico com o sensorial; o que quero dizer é que o xondaro não possui só a técnica no formato que conhecemos, mas que ele pode abdicar dela para retornar ao inimigo em um estado diferente. Enquanto algumas práticas marciais buscam cada vez mais uma consolidação da objetificação, aumentando o caráter sistemático, apelando muitas vezes para as ciências ditas duras como a física para se apresentarem como artes mais legítimas ou modernas; o xondaro se apresenta com o movimento contrário, estimulando esse retorno como um estado a se alcançar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Busquei aqui uma breve investigação sobre os aspectos da prática xondaro que em alguma medida se relacionam com o paradigma da corporeidade apresentado por Csordas, e utilizei como fonte de análise alguns trabalhos anteriores sobre o tema e o filme documentário A Força do Xondaro. Não me preocupei em analisar a categoria arte marcial, mas compreendo que esta não é uma categoria nativa e acredito ter ficado claro que em nenhum momento tive a intensão de generalizar a prática, ou reduzi-la a um estereótipo; utilizei o termo para definir o sentido de performance marcial que expus. Um ponto importante, que já mencionei no trabalho e que gostaria de reforçar, é que eu não poderia falar em quebra de um paradigma da corporeidade, ou mesmo do colapso entre as noções de corpo e mente, apresentando os exercícios do xondaro como algo que busca uma espécie de anulação da razão, do corpo enquanto objeto ou do habitus propriamente; ou mesmo como uma transcendência do mundo objetificado. Nesse sentido é importante a compreensão de que esses dois movimentos – a intenção de se voltar a um estado de percepção, a um nível apenas sensorial; e o retorno ao mundo objetificado, ao habitus propriamente – acontecem em um mesmo momento, e não em substituição de um pelo outro. Assim, tentar definir as fronteiras entre onde começa um e acaba o outro, é ainda estar preso à dualidade que o próprio paradigma de Csordas contesta. A ideia é que, na prática do xondaro há uma intenção, um esforço de se encontrar um retorno ao pré-objetivo, que acontece por exercícios que estimulam a percepção, o lado sensorial, em detrimento de lidar com objetos consolidados já no próprio habitus.

Muito ainda precisa ser estudado e a análise que apresento aqui tampouco pode ser entendida como característica única do xondaro, que é praticado em diversas aldeias; sobretudo considerando que as fontes analisadas são datadas, assim como o fato de que há uma construção narrativa em qualquer produto audiovisual. É possível que outros estilos de artes marciais possam trabalhar aspectos semelhantes, assim como obter resultados diversos. De qualquer forma, o que chama atenção no xondaro analisado neste material é justamente a capacidade que ainda existe de não se impor um tipo de sistematicidade que atende apenas ao mundo objetivo, como valor a ser alcançado, fazendo com que exista a todo instante uma certa liberdade de atuação em detrimento de uma exigência sobre os aspectos perceptivos da prática. No entanto, reforço que isso também não exclui a possibilidade de existir, em algum nível, aspectos corporais que caracterizam a própria prática do xondaro. Mesmo que de forma reduzida, alguma definição técnica precisa existir para que a própria prática exista de forma ordenada, com nome e características que a distingue de outras práticas.


NOTAS

1. Este artigo corresponde a parte dos estudos realizados para a elaboração da dissertação de mestrado: XONDARO GUARANI: A performance marcial indígena como estratégia política imagética
2. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – ninorhamos@hotmail.com
3. Xondaro resumidamente é uma prática performática característica dos Guarani, que se assemelha tanto a uma dança quanto a uma luta.
4. Segundo o site “Povos Indígenas no Brasil” relacionado ao “Instituto Sócio Ambiental”, o povo Guarani, vive em locais que compreendem o território do Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina, e eles também são conhecidos como Chiripá, Kainguá, Monteses, Baticola, Apyteré, Tembekuá, dentre outros. Dentre os que vivem no Brasil atualmente podemos destacar os Mbya; os Pãi-Tavyterã, conhecidos no Brasil como Kaiowá e os Avá Guarani.
5. Mauss (2006, p. 406) narra uma fórmula de ritual de caça feita por uma sociedade australiana ancestral, onde o conseguiam correr atrás de cangurus, emas e cães selvagens até deixa-los exaustos.
6. Não me refiro aqui a uma comunicação corporal unicamente como uma espécie de linguagem que se pressupõe dotada de significado. Uso o termo comunicação de forma mais ampla, no mesmo sentido em que Alfred Gell define os objetos de arte como objetos que, no contexto das relações sociais, possuem “agência, intenção, causalidade, resultado e transformação” (ALFRED GELL, 2018, p. 31).
7. Os estudos sobre o xondaro contidos no livro “A Força do Xondaro” utilizado aqui como material de pesquisa, foram realizados em aldeias situadas nas regiões Sul e Sudeste do Brasil para compor a primeira fase do INRC (Inventário Nacional de Referências Culturais Guarani) (PESQUISADORES GUARANI, 2013, p. 7
8. Há variações entre gêneros que praticam o xondaro conforme a aldeia estudada. Em algumas, a prática é feita por homens e mulheres, em outras as mulheres fazem uma espécie de dança de acompanhamento, mas os homens ficam com os exercícios bélicos da prática.
9. Essa diferenciação entre o termo dança que pode simbolizar uma “diversão” e o mesmo termo no contexto da prática xondaro, também constatei na experiência de campo, ele não se refere propriamente a um momento de descontração, mas sim em uma forma de se agir e atingir os objetivos da luta.
10. Xondaro também pode ser entendido como o título de quem pratica o xondaro.
11. Termo utilizado para designar o mestre que conduz os praticantes no momento da dança.
12. Esse instrumento é chamado de popygua ou yvyra raimbe, uma espécie de bastão de madeira.
13. Goffman (2002) utiliza da metáfora do teatro para explicar sua teoria, por isso o termo aspectos cênicos.
14. Csordas utiliza tanto o conceito de habitus de Bourdieu quanto o de Pré-Objetivo de Marlon Ponty para explicar o que seria o paradigma da corporeidade, como uma espécie de colapso entre os conceitos de corpo e mente, tidos como elementos separados, mas que, na sua concepção, estão colapsados (CSORDAS, 2008).
15. É importante ressaltar que esta ressignificação não tem nenhuma conotação do que pudéssemos entender como positiva ou negativa, como se antes existisse um sentimento bélico e após, não; mas sim com a maneira que a interação em forma de luta vai acontecer. A dissertação de mestrado A Esquiva do Xondaro (2017) mostra bem como essa leveza acontece na prática. Em suas palavras, os que alcançam a leveza passariam a possuir “extrema leveza corporal, podendo esquivar até da bala, superar qualquer inimigo e não se cansar nunca – sempre com disposição total”.
16. Bregalda (2017, p. 113)cita a leveza como objetivo principal. Eles “dançam para tornar seus corpos leves, para alcançar a fortaleza e a alegria.” [. . . ] o que teria levado, já referido, Mbya antigamente a alcançar o estado de perfeição – aguyge, superando a morte e a putrefação do corpo”.

BIBLIOGRAFIA

ALFRED GELL. Arte e Agência. Ubu Editor ed. [s.l: s.n.]
BREGALDA, D. J. Cosmocoreografias: Poéticas e Políticas do Mover. 2017. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2017.
CLIFFORD GEERTZ. A Interpretação das Culturas. LTC ed. [s.l: s.n.]
CSORDAS, T. Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia. Em: Corpo/Significado/Cura.
[s.l: s.n.]p. 464.
CYNARSKI, W. Values of martial arts in the light of the anthropology of martial arts. Journal of
Combat Sports and Martial Arts, v. 3, p. 1–4, 2012.
CYNARSKI, WOJCIECH; YU, JONG-HOON; WARCHO, Krzysztofl. Martial arts in psycho-
physical culture. “IDO MOVEMENT FOR CULTURE. Journal of Martial Arts Anthropology”,
2015.
ESTHER JEAN LANGDON. Performance e sua Diversidade como Paradigma Analítico: A
Contribuição da Abordagem de Bauman e Briggs. Ilha Revista de Antropologia, v. 8, n. 1,2, p.
162–183, 2006.
GOFFMAN, E. A Representação do Eu Na Vida Cotidiana. Vozes ed. [s.l: s.n.]
L. KESSE. A esquiva do xondaro movimento e ação política entre os Guarani Mbya. 2017.
LEANDRO PAIVA. Olhar Clínico nas Lutas, Artes Marciais e Modalidades de Combate. OMP
Editor ed. [s.l: s.n.]
MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. Vozes ed. [s.l: s.n.]
ORTNER, S. Poder e Projeto - Reflexões sobre agência. (ABA - Associação Brasileira de
Antropologia, Ed.) Em: 25a Reunião Brasileira de Antropologia, Goiânia. Anais. . . Goiânia:
2006.
PESQUISADORES GUARANI. Xondaro Mbaraete - A Força do Xondaro. Centro de ed. [s.l:
s.n.]
QUILICI, C. Sydow. Antonin Artaud : teatro e ritual. [s.l.] FAPESP, 2004.
RODRIGUES, J. C. Tabu do Corpo. Achiamé ed. [s.l: s.n.]