terça-feira, 21 de dezembro de 2021

The embarrassment show: individualism and the journey of the archetypal hero of MMA fighters in the movie The Hurt Business

O espetáculo do constrangimento: individualismo e a trajetória do herói nos lutadores de MMA no filme O Espetáculo da Dor

(Article)

Proa: Revista de Antropologia e Arte
v. 11 n. 2 (2021)


Wallace Ramos de Figueiredo (Nino Rhamos)

Published: 2021-12-18

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Resumo 

Este artigo analisa a performance dos lutadores de MMA no documentário The Hurt Business (O Espetáculo da Dor). O texto apresenta a construção da identidade do lutador através do conceito de individualismo pensado por Gilberto Velho, e utiliza tanto a Jornada do Herói de Joseph Campbell quanto a ideia de constrangimento de Goffman para mostrar o sentido das construções narrativas após a derrota, fomentando no lutador motivos para uma busca incessante pela vitória.

Palavras-chave: Individualismo; Trajetória do herói; Arte marcial; O Espetáculo da Dor.

1 O espetáculo

O filme intitulado O Espetáculo da Dor, foi veiculado pela plataforma de streaming Ne-tflix e produzido em 2016 com 111 minutos de duração. Em sua sinopse afirma exibir “a história de diferentes astros das artes marciais e a sua batalha na indústria das lutas” no contexto dos campeonatos Mixed Marcial Arts (MMA).

O  MMA  diz  respeito  a  uma  de  luta  de  ringue,  um  esporte  de  contato,  que  se  pro-põe uma mistura de diversos estilos diferentes de luta corporal sem armas, em um só evento, permitindo golpes em pé ou no chão, respeitando um limite de tempo e uma forma de pontuação específica. Participam, dentre outros estilos menos comuns, o Jiu Jitsu, Boxe, Wrestling, Muay Thay e Karate. Muitas das vezes a competição MMA está associada ao termo Ultimate Fighting Championship (UFC), sendo a marca da empresa que organiza as lutas.

Criada em 1993, a UFC é uma organização profissional de artes marciais mistas (MMA) e  as  lutas  são  transmitidas1 para mais de 165 países e territórios. Segundo o site da empresa, a marca pertence ao grupo Endeavor2, que atua em escala global, e produz atividades que envolvem esportes, moda e entretenimento.

De  maneira  geral  o  termo  arte  marcial  é  muito  associado  ao  campo  desportivo  re-presentando diversas formas de esportes de contato, assim como nos filmes de artes marciais que movimentam a indústria cinematográfica mundial. Muitos lutadores divergem sobre o objetivo e quais práticas representam “a verdadeira” arte marcial (PAI-VA, 2015), de qualquer forma ela está sempre associada a qualquer luta corporal que contenha uma técnica.

Dentre os autores que têm se dedicado ao estudo das artes marciais considerando seus campos de análise, temos o David E. Jones (2002), Wojciech J. Cynarski (2012) e Klens Bigman (2016); e cada um apresenta leituras sobre o contexto dessas práticas. No entanto, este trabalho não se propõe analisar o termo “arte marcial”, mas entender que os lutadores, no contexto do filme, se identificam como artistas marciais. Isso faz com que cheguemos mais próximo do significado do termo dentro desse contexto.

O filme se dedica em um momento a contar a história do MMA, e a narrativa não dife-re da legitimação da prática através de narrativas sobre a sua história, sendo comuns aquelas que marcam a origem em tempos remotos; como conta Bas Rutten3 no filme, quando diz que o MMA surgiu em 648 a.C. com o Pancrácio4, portanto tendo como origem a Grécia antiga. Pensar no documentário como uma expressão completa do universo do MMA, como expressão fiel da realidade, pode ser um equívoco. Apesar da sua intenção de documentar uma realidade, existe a construção de uma história, onde a escolha de diversas ferramentas técnicas de produção acaba por caracterizar uma narrativa específica. Isso nos impossibilita a tomada desse material como expressão pura do que é o universo real dos lutadores. Seguindo na mesma direção de Ramos (2008), quando pensou as construções narrativas de um documentário, Paul Henley (2016, p. 59) explica a ne-cessidade de haver uma narrativa no documentário para que não haja uma sequência confusa de imagens: “[S]e um filme não tem uma estrutura narrativa, ou se ele é muito difícil de interpretar, há então o risco de que o filme vá se deparar com uma sequência de vinhetas incompreensíveis e o público em breve ficará desinteressado”.

Bill Nichols (2010, p. 30) também pensou a importância de se considerar a sua construção narrativa quando diz que
[...] os documentários podem representar o mundo da mesma forma que um advogado  representa  os  interesses  de  um  cliente:  colocam  diante  de  nós  a  defesa de um determinado ponto de vista ou uma determinada interpretação das provas. Nesse sentido, os documentários não defendem simplesmente os outros, representando-os de maneira que eles próprios não poderiam; os documentários intervêm mais ativamente, afirmam qual é a natureza de um assunto, para conquistar consentimento ou influenciar opiniões.
Seguindo a mesma linha, mas estendendo a ideia para outros formatos de filmes, Odin (2003, p. 160) mostra como os vídeos familiares desempenham um papel social. Há uma escolha das cenas que devem ser exibidas, fazendo com os filmes apresentem características semelhantes. Ele diz:
Geralmente, o filme de família não mostra os problemas ou as reflexões íntimas de cada um. Ele só nos mostra os acontecimentos felizes: nascimento, casamento, férias à beira-mar ou no campo, passeios com amigos, viagens, etc.; suas imagens são fundamentalmente eufóricas.
Isso invalida o filme? Não, na verdade, apresenta as representações produzidas pelos participantes ou mesmo aquelas comuns ao campo5, construídas com a intenção de transmitir determinada ideia àqueles, como mais um elemento a ser considerado; ou seja, a forma com que a narrativa é construída, as informações que são escolhidas, mas também aquelas deixadas de fora, diz muito sobre o universo que está sendo estuda-do. De certa forma os lutadores aceitaram que as suas imagens fossem “construídas” de tal maneira, como uma expressão fiel da imagem que desejam transmitir. Esse argumento se alinha com o sentido em que Joo Ho Kin (2003, p. 230) trata as imagens fotográficas, como fazendo parte de um “projeto de memória, de um modo de ver a si próprio numa rede de pseudo presenças que expressam a imagem biográfica que se deseja deixar como legado”. Rose Satiko Gitirana Hikijino (2012, p. 99) no livro Imagem da Violência, também chama atenção para a forma com que a mídia ensina ao públi-co o que deve ser temido quando escolhe quais crimes devem ser apresentados com frequência.

Portanto, a ideia aqui não é analisar somente a forma com que a derrota no ringue aparece nas narrativas do filme, mas ter como premissa das análises o fato que há possivelmente uma intenção de que essa imagem seja absorvida como expressão da “realidade”. Há uma intenção – mesmo nos momentos de intenso sofrimento – de que todos nós fiquemos convencidos que este é o universo dos lutadores, justificando as emoções que envolvem a prática e todas as suas expressões; desde momentos de violência justificada, dores diversas, alegrias pelas vitórias e sequelas, tanto físicas quanto psicológicas. Isso ocorre no mesmo sentido em que Goffman (2011, p. 96), ao analisar o constrangimento, diz que este “tem a ver com a figura que o indivíduo representa diante dos outros considerados presentes naquele momento”.

2 A construção do herói

Quando Marcel Mauss (1980) pesquisou sobre a representação dos sentimentos como algo que surge não apenas na manifestação individual, mas principalmente como ex-pressões que acontecem em um contexto coletivo, sobretudo no sentido de uma es-pécie de fala simbólica, ele abria uma porta para entendermos de forma significativa – no sentido antropológico – as manifestações emotivas. Neste texto clássico de 1921, intitulado como A expressão obrigatória dos sentimentos, onde ele estudou as manifestações dos sentimentos no ritual funerário de grupos primitivos australianos, cita:“Os gritos são como frases e palavras. É preciso emiti-los, mas é preciso só porque todo o grupo os entende. É mais do que uma manifestação dos próprios sentimentos, é um modo de manifesta-los aos outros, pois assim é preciso fazer.” (MAUSS, 1980, p. 153).

Portanto, a análise aqui busca apresentar elementos semelhantes; ou seja, ten-tar entender de que forma no universo personalista das lutas de MMA, onde expressões de emoções que acontecem após a derrota no ringue servem de base para uma narrativa que diz respeito a categorias de emoções compreendidas e esperadas pelo círculo social que envolve a produção das lutas.

O individualismo no filme, que gera um olhar personalista dos lutadores, tam-bém é muito marcante. A ideia do homem da modernidade citada por Margaret Archer (2012) pode ser vista como um objetivo a ser perseguido no discurso dos entrevista-dos. Archer vai analisar o perfil de dois modelos de homem conceituados por teóricos como formas de interpretar o comportamento humano: o homem da modernidade e o ser da sociedade. Para Archer, ao contrário do ser da sociedade, que seria mais precisamente o homem de Durkheim6, completamente dependente do “poder que as forças sociais têm de talhar e de moldar” aspectos que ultrapassam inclusive a concepção de self; o homem da modernidade seria praticamente seu oposto, aqueles capazes de “[...] dominar seu ambiente e, assim, de controlar seus próprios destinos, como se fosse ‘a medida de todas as coisas’. Além de situar-se fora da natureza, como se fosse seu próprio senhor” (ARCHER, 2012, p. 53).

Para Archer essas duas formas de análises são insuficientes quando utilizadas como única  maneira  de  entender  o  comportamento  humano;  porém,  sem  negar  esta  afirmação, vejo que os elementos que caracterizam o homem da modernidade7 aparecem nos discursos. Não que eles sejam uma espécie de prova da existência e eficiência desse modelo, muito pelo contrário, os conflitos que aparecem nos relatos mostram a  contradição  entre  a  sua  idealização  e  a  “realidade”;  assim  como  mostram  também  que estes são os valores utilizados de pilares motivacionais, tanto do próprio espetáculo quanto do desejo de muitos lutadores de continuar lutando. Aquele que atinge a vitória em uma luta, ou mais ainda, o auge de sua carreira como lutador, é justamente aquele que conseguiu representar com perfeição o homem da modernidade de Archer.

Quando  Jon  Jones8  (também  conhecido  como  Bones)  conta  a  história  de  como  ele  atingiu um momento importante da carreira, começa dando atenção para a amizade com Rashad Evans9, comentando que este tinha sido sua fonte de inspiração. Em se-guida  ele  mostra  que  logo  surgiu  como  prioridade  a  necessidade  de  superá-lo,  por  isso, assim que Rashad se feriu, Bones não hesitou em aproveitar a oportunidade ale-gando que esperar ele se recuperar, como foi proposto pelo próprio Rashad, iria contra a forma como a vida é. Ele diz: “Não é assim que a vida funciona (se referindo à possibilidade de esperar a recuperação do antigo amigo). Foi a minha oportunidade. Minha oportunidade de ser grande, e eu fui”. Tempos depois Rishad o desafiou, e Bones venceu – “acabei com ele”. Apesar de ter sido chamado de traidor, ele se justifica dizendo: “Eu era só um garoto seguindo o meu coração e os meus sonhos.”

Precisamos ter cuidado quando tratamos tanto a questão do individualismo do ser da modernidade, quanto o ser da sociedade de Durkheim, para que um não seja tomado pelo outro de forma que os agenciamentos dos indivíduos fiquem de fora de uma análise  mais  aprofundada10. Portanto, faço a análise do filme sem apagar a agência, mas vendo os valores do individualismo como comportamento tido por ideal para os lutadores. Esse cuidado é o mesmo que Archer (2012) vai ter na diferenciação dos dois modelos, como citei anteriormente; e que Sherry Ortner (2006) vai ter quando explica a importância de não se confundir agência, com os aspectos do individualismo anglo-americano.

O individualismo que aparece no filme pode ser entendido como uma relação, sobre-tudo na sociedade estadunidense, entre os aspectos sociais produzidos pelas grandes metrópoles e a necessidade de expressão desses aspectos no campeonato. A indús-tria  de  lutas,  através  de  seu  interesse  comercial,  estimula  tais  valores  nos  lutadores,  fazendo com que o ethos capitalista11 do acúmulo seja uma das justificativas para se enxergarem como verdadeiros heróis solitários em busca de um final heroico para suas carreiras, estimulando uma postura diante das dinâmicas da vida que se assemelha à luta de ringue. Tal atmosfera se torna presente em todos os espaços compartilhados por eles.

Gilberto  Velho  apresenta  alguns  pontos  interessantes  para  pensar  esse  universo  das  lutas de MMA quando analisa o individualismo e seu surgimento como ideologia associada à urbanização:
O relacionamento pessoal direto ‘face to face’, seria típico de pequenos gru-pos,  comunidades,  aldeias,  etc.  enquanto  na  cidade,  especialmente  na  me-trópole, encontraríamos a distância, a impessoalidade e o anonimato. Assim haveria um contraste entre a predominância da vida grupal, comunitária, com forte presença de laços familiares e de parentescos e um individualismo que chegaria na vida metropolitana a formas agonísticas, com perda ou desagre-gação de rede de parentesco e reciprocidade. Assim os indivíduos tenderiam a se organizar em famílias nuclearesou ficar cada vez mais isolados, estabele-cendo relações mais impessoais e distantes. (VELHO, 2000, p. 16)
As formas agonísticas, citadas por Velho, de alguma maneira se relacionam com aspec-tos da agressividade esperada nas lutas e no comportamento dos lutadores durante o evento. Uma agressividade que nem sempre se mostra só em forma de discurso, mas também nas posturas corporais, vestimentas e relações com familiares e amigos. Com a quebra da relação “face to face”, a partir do surgimento das grandes metrópoles, a impressão que temos é haver um aumento da expectativa do encontro no ringue.

Entretanto, mesmo que se constate o individualismo presente como valor, o que cons-trói a ideia de Eu do lutador ainda não está completa. Por si o individualismo resolve a análise dos comportamentos no filme; pois, se podemos entender que aquele que sai vitorioso de uma luta é aquele que vai representar melhor os valores do homem da modernidade de Archer, o elemento mais interessante é entendermos os motivos que geram a justificativa da derrota, e narrativas são construídas para ressignificá-la. A ideia de fachada de Goffman (2011) e sua análise sobre as formas com que o constrangi-mento acontece a partir da perda da fachada nos auxilia, portanto, a entender de que maneira os lutadores se esforçam para reconstruir o papel do vencedor, do homem da modernidade, quando esse foi perdido devido à derrota.

Há também uma diferença entre a forma com que o individualismo acontece em ho-mens e mulheres. A fala da lutadora Sarah MacMann12 ilustra bem. Sarah aponta como causa  principal  de  sua  entrada  no  mercado  de  lutas  um  acontecimento  trágico  que  ocorreu com o irmão, mas conta em seguida a relação de gênero bem marcante que existe entre os lutadores. Sua permanência no campo das lutas de MMA foi difícil por-que o padrão de lutador excluía as mulheres desse universo. Em sua fala ela diz:
[...] aos 14 anos decidi que queria fazer algum esporte. Eu quis lutar porque parecia o esporte mais natural. Mas na Carolina do Sul não aceitavam isso. Mulheres deveriam cozinhar e limpar para os homens, não lutar com eles. Era uma época diferente. Eu sempre fui meio cabeça-dura. Quando diziam que eu não poderia fazer algo, principalmente por ser mulher, eu dizia: ‘Sem chance. Eu vou fazer isso. Você não pode me dizer o que posso ou não fazer, do que sou ou não capaz’.
As falas  da Michelle  Waterson13 e  Angela  Lee14 seguem  a mesma  linha, e  mostram como a entrada no universo das lutas foi entendida como instrumento de afirmação de gênero em um campo ainda machista, expresso nos comentários de alguns lutadores quando perguntados sobre a participação feminina. Michelle diz: “as artes marciais me ajudaram muito. Comecei a lutar desde pequena e isso moldou a minha autoestima. A luta me deu uma voz.”; e Angela diz em seguida: “[N]ós lutadoras temos uma voz, podemos  ser  ouvidas.  Cada  vez  que  entramos  no  ringue  ganhamos  mais  respeito.  Acho que isso nos coloca na posição de ser a voz das mulheres do mundo todo que não têm a oportunidade de ser ouvidas”.

Apesar de todos esses desdobramentos do individualismo, ele não é o único que está em relação com a identidade do lutador. Ele se “se perceber” enquanto homem da modernidade não explica todo estímulo para se atingir o auge da carreira, a necessidade da vitória a qualquer custo. Por si, o individualismo poderia existir mesmo em momentos de derrota, mesmo que o lutador desistisse do universo das lutas e escolhesse projetá-lo  em  outra  atividade.  Há  algo  ainda  que,  associado  a  esse  individualismo,  mantém a motivação para perseguir o ponto máximo da carreira. Existe um modelo a ser atingido, um tipo ideal perseguido durante sua trajetória, e esse modelo se assemelha a jornada do herói (CAMPBELL, 1949). O conceito de monomito15  pode  ser  visto indiretamente como elemento marcante na maioria das falas quando produzem narrativas sobre suas histórias.

Apresento abaixo uma breve relação entre as etapas da trajetória do herói e possíveis momentos da trajetória dos lutadores, usando como base a síntese dos doze passos de Campbell apresentados por Ricón (2004), inspirados no livro de Christofer Vogler (1997), A Jornada do Escritor. Segundo Ricón, eles se adéquam melhor às narrativas contemporâneas (cinema e TV).

1 - O mundo comum: “A maioria das histórias leva o personagem principal para fora do seu mundo comum, cotidiano, em direção a um mundo especial, novo e estranho” (RICÓN, 2004, p. 2). O momento em que o lutador nem pensou em entrar no circuito. Ele está, para o contexto das lutas, completamente anônimo.

2 - O chamado à aventura: “Ao herói é apresentado um chamado à aventura, um desafio de grande risco. Uma vez apresentado esse chamado, o herói não pode mais permanecer indefinidamente em seu mundo comum” (Ibid. p.2). É quando o próprio aspirante a lutador passa a conhecer o universo das lutas e vê a possibilidade de se tornar um herói.

3 - A recusa do chamado: “É normal qualquer herói sentir medo após ser chamado à aventura. (...) Quando o herói recusa, é necessário que em algum momento surja alguma influência para que ele vença esse medo” (Ibid. p.2). Aqui, as referências são os diálogos sobre a relação familiar. São as pessoas que, no entorno, ajudam o herói a vencer qualquer receio que possa surgir quando ele se vê diante da trajetória. Pode estar relacionado também com qualquer acontecimento que o dê incentivo a seguir.

4 - O encontro com o mentor: pode ser o próprio treinador, a escola de treino, um local onde ele se qualifica e recebe apoio para sua jornada.

5 - A travessia do primeiro limiar: “Finalmente o herói se compromete com sua aven-tura e entra plenamente no mundo especial ao efetuar a travessia do primeiro limiar” (RICÓN, 2004, p. 3). É o momento em que ele faz sua primeira luta importante e se coloca de fato no circuito.

6 - Testes, aliados e inimigos: “No momento em que o herói entra no mundo especial, encontra novos desafios, testes, faz aliados e luta contra inimigos” (Ibid. p.3). Após a primeira luta ele se estabelece no circuito, conhece pessoas e passa a ser considerado um lutador profissional.

7 -  Aproximação da caverna oculta: “Aqui o herói chega à fronteira de um lugar peri-goso onde está o objeto de sua busca.” (Ibid. p.3). Esta etapa é representada por novos desafios, lutadores mais robustos, também profissionais. Ele começa a vislumbrar o auge da carreira.

8 - A aprovação suprema: “A provação suprema é o momento crítico nas histórias. O herói enfrenta a possibilidade de morte” (Ibid.p.3). Ela pode ser relacionada a uma luta importante como uma batalha por um cinturão, contra alguém mais forte ou qualquer outro desafio inédito. Ele acontece em cada luta profissional considerada um marco na carreira. É nesse momento que, havendo derrota, nasce o constrangimento de Goffman que falarei mais a frente. É como se o lutador ficasse preso nesta etapa da trajetória do herói, precisando superá-la, e se ocorrer algum problema físico ou psicológico que o impeça de prosseguir obrigando-o a decretar o fim da carreira, nasce uma espécie de trauma e ele entra em crise pela superação dessa fase. 

9 - A recompensa: “Após sobreviver à morte, derrotar o dragão e salvar a princesa, o herói e o espectador têm motivos para celebrar” (Ibid. p.3). Essa etapa acontece com a vitória da luta anterior seguida por eventuais comemorações, aquisições de bens ma-teriais, acesso a círculos sociais diferenciados, etc. A trajetória do herói segue seu fluxo.

10 -  Caminho de volta:   “O   caminho   de   volta   é   onde   começa   o   terceiro   ato da história. O herói ainda está no mundo especial e corre perigo.” (Ibid. p.3). Após a vi-tória anterior e sua recompensa, ele ainda não se aposentou e surgem outros desafios. Ele ainda não chegou ao auge. Nota-se que nesta etapa há sempre o retorno à etapa anterior, enquanto ele, desafiado, precisa manter a identidade do herói da trajetória imaginada.

11 - Ressurreição: “O herói deve “renascer” e, assim, purificar-se antes de voltar ao mundo comum. Isso até pode ser um segundo momento de vida e morte, ainda mais intenso que a provação suprema. Essa etapa é uma espécie de exame final do herói, para ver se realmente aprendeu as lições” (Ibid. p.3). Representada na trajetória do lu-tador como a última luta da carreira, antes da aposentadoria.

12 - Retorno com o elixir: “O herói retorna ao mundo comum, mas toda a jornada não tem o menor sentido se ele não trouxer consigo um elixir” (RICÓN, 2004, p. 4). O Elixir na trajetória dos lutadores pode ser representado por toda experiência, sua história de vida. Ele volta para o mundo comum, mas com algo a mais que é todo seu histórico de campeão. Ele vira referência no circuito e a trajetória do herói está cumprida.

Apesar de a trajetória do herói ser uma narrativa que normalmente é reproduzida em filmes, séries, quadrinhos, etc., utilizá-la para uma análise de histórias que se pressu-põem “reais” pode parecer uma tentativa de adequar a própria “realidade” a um “es-quema já pronto”; porém, no mesmo sentido em que falei no início sobre as narrativas cinematográficas, é interessante considerar que a diferença entre a realidade dos luta-dores fora do filme e a forma como suas trajetórias são apresentadas neste, passa por um processo de adequação pela própria natureza da construção cinematográfica. Os documentários não representam uma cópia fiel do que seria a “realidade”, como diz Bill Nichols (2010, p. 47), ele
[...] não é uma reprodução da realidade, é uma representação do mundo em que vivemos. Representa uma determinada visão de mundo, uma visão com , talvez  nunca tenhamos  , mesmo  que os  aspectos do  mundo nela representados nos sejam familiares.
E Gonçalves (2016, p. 19) vai dizer:
Questiona-se a linguagem do documentário de modo a expor suas entranhas, desvelando o que está por trás de uma imagem pretensamente científica. Ao se colocar em suspensão o que parecia ser simples técnica de filmagem (travelling, panorâmica, som direto, música), tomadas como registros de verdade ou verossimilhança, desconstrói-se esta ‘naturalidade’ das imagens no documentário.
A ideia aqui não é mostrar se os lutadores cumprem ou não a trajetória do herói, mas expor que ambas, tanto a história de vida dos entrevistados quanto a própria construção cinematográfica, se esforçam para reproduzi-la. A necessidade de construir a ideia de um “personagem” que segue as etapas da trajetória do herói aparece nos discursos e é nesse sentido que ela se transforma em um tipo ideal a ser seguido, por fazer parte da identidade do lutador, servindo também para que eles não saiam dos circuitos de lutas, buscando sempre uma vitória atrás da outra; e entrando em um conflito com essa  identidade  quando  a  derrota  se  apresenta  com  impeditivo  do  retorno  aos  ringues. O filme, portanto, além de ser um produto de entretenimento, ganha um caráter didático para os próprios lutadores e para os simpatizantes que pretendem se iniciar na carreira.

Quando Gilberto Velho (2000) fala sobre as características do individualismo, é interessante perceber que uma delas não é vista no perfil dos lutadores que alcançaram o auge, que é o fato de não serem necessariamente anônimos. O que se torna uma diferença entre o individualismo, no sentido de uma concepção atribuída a indivíduos comuns de uma coletividade, e o individualismo associado ao perfil do herói esportivo analisado aqui. Se o primeiro, segundo Gilberto Velho, possui características como distância, impessoalidade e anonimato; o segundo tem a divulgação de seus feitos com o universo que compõe as lutas (público, produtores, canais de televisão e patrocinadores) como algo completamente inerente à sua atividade; semelhante à análise que Fausto Amaro (2013) faz do herói esportivo a partir das representações no filme “Heleno”.

No entanto, o anonimato16 aparece quando a trajetória do herói está no início, apontado nos lutadores que ainda se encontram nas lutas clandestinas que aconteceriam em áreas de reserva indígena17, imaginando-se que este seguirá um caminho semelhante à de todos os competidores que atingiram o auge da carreira e representam o exemplo maior da possibilidade de realização; portanto, esse anonimato existe no contexto do universo das lutas oficiais que é o lugar onde a trajetória do herói acontece. Nesse sentido que a necessidade de vitória – a saída do anonimato – passa então a ser a necessidade de seguir e manter a trajetória do herói, onde valores do ethos individualista, seguindo as características do homem da modernidade de Archer (2012), aparecem como a base de realização dessa trajetória, fazendo com que o herói exista em função unicamente dela18.

A vitória maior passa não mais a ser apenas a conquista do dinheiro, o reconhecimento público, ou um embate pessoal com outro lutador. Todos esses elementos são importantes,  mas  é  na  realização  da  trajetória  que  está  o  seu  maior  objetivo;  assim  como  na crença dos valores individualistas que alimenta a ideia de que a trajetória do herói sempre será possível. Mesmo que o herói atue em nome do bem-estar comum (VALLE; TELLES, 2014), o que poderia sugerir um abandono de si em função dos “outros”, para que ele se estabeleça enquanto herói, com sua capacidade de estar acima dos padrões comuns19, portanto com poderes de romper com as forças sociais que colocam limites (como se fosse ele fosse capaz de superar o Homem de Durkheim), ele precisa do individualismo enquanto base de sustentação da sua personalidade. É esse indivíduo, uma espécie de mônada que se enxerga como o herói da trajetória do herói de Campbell (1949), que chamo de Eu lutador do filme.

3 O fim do herói

Nesta parte do texto vou me aproximar um pouco do olhar de Goffman para entender como sua ideia de constrangimento surge em uma situação de derrota do lutador. O ponto de partida é o encontro face a face, onde Goffman (2011, p. 91) vai dizer que este  acontece  “quando  os  indivíduos  reconhecem  que  se  moveram  para  a  presença  imediata  uns  dos  outros  e  termina  com  uma  retirada  aceitável  da  participação  mútua”. Como para Goffman (2011) o constrangimento surge com a ruptura da interação provocada por interferências que perturbam o encontro face a face; ao observar a luta, percebe-se que ela é um encontro face a face forçado20, porém com o objetivo específico de resultar no constrangimento de um dos lutadores. Se em um encontro qualquer entre dois indivíduos esse resultado não está previsto, na luta analisada aqui ele é muito claro. Nesse sentido, seguindo os passos de Goffman podemos entender que o incidente constrangedor é causado por quem vence a luta, e é constrangedor não apenas para aquele que perdeu, mas para todos que o apoiaram e que estavam no momento da luta, ou o acompanham em momentos posteriores e conhecem a trajetória do lutador derrotado desde o seu surgimento. Michael Chandler21 após contar a história de como ele se esforçou para se tornar lutador, e como trava uma luta solitária para manter o peso exigido pela categoria, diz:
Perder é difícil. Tive um treino duro, estratégico, e me cerquei de pessoas certas, as pessoas que me ajudariam, e eu nunca me vi perdendo. Eu venci as minhas 12 primeiras lutas, [...]. Entrei nesse esporte para ser campeão, subir na plataforma e ser visto, então não imaginava como seria possível perder ali. Mas aconteceu. Eu praticamente voltei dos mortos.
Há também diferenças nas formas de se expressar o constrangimento, seja ele na forma de um orgasmo abrupto, ou através de um desconforto contínuo, mais leve (GOF-FMAN, 2011). Se o orgasmo abrupto pode ser visto no momento da derrota no ringue, o desconforto contínuo pode ser visto na expressão constante daquele que não con-segue voltar e completar sua trajetória. Esse aspecto aparece na fala de praticamente todos os lutadores que por algum motivo não podem mais lutar.

Assim, pontos críticos também são reconhecidos no filme, ou seja, momentos em que
[...] o indivíduo alvoroçado desiste de tentar ocultar ou minimizar seu desconforto: ele cai no choro ou em paroxismos de riso, tem um acesso de cólera, ou é acometido por uma fúria cega, desmaia, corre para a saída mais próxima, ou se torna completamente imóvel, como se estivesse em pânico (GOFFMAN, 2011).
Tais características  aparecem na  fala do  lutador Gary  Goodridge22, no  momento da  entrevista que ele conta as sequelas físicas e emocionais deixadas por uma luta, e cita como consequências o esquecimento, fala alterada e agressão. Seu discurso sobre o momento em que perde alguns sentidos após uma luta é semelhante à descrição de Goffman:
Meu treinador disse que não podia ir porque não tinha dinheiro, mas mandou eu ligar pra ele assim que acabasse a luta. Depois da luta, eu só me lembro de ter insistido que precisava ligar para Norman. Meu cérebro não fez mais nada. Eu não sabia onde estava, o que estava fazendo. Só lembro de ter dito que  precisava  ligar  para  ele,  então  disse  para  todo  mundo.  Disse  para  todo  mundo que podia me ouvir. Pegamos o telefone e eu liguei para ele. Ele perguntou: ‘você está bem?’. Eu disse: ‘Não sei’. Ele perguntou: ‘Você venceu?’. Eu disse: ‘Venci o que?’. ‘Você lutou. Venceu?’. Ele mandou outra pessoa falar ao telefone. E... Desculpem... [fala emocionada] Eu pus outra pessoa na linha, e ele decidiu que... Ele disse que... Ele mandou o cara me levar para o hospital. Desculpem, eu fico emocionado porque... Esse cara... Isso foi quando ele... Ninguém ao meu redor sabia que eu estava alterado.
Nitidamente Gary narra o momento em que não se importava mais se todos perceberiam seu desconforto, mesmo dizendo que ninguém sabia que ele estava alterado, sua história mostra o momento de pânico que envolveu a situação. A ligação para o treinador surge como a saída mais próxima citada por Goffman, assim como o fato de seu cérebro não fazer mais nada, soar como a imobilidade também citada.

4 O teste de provocações

Outro ponto interessante para análise é o teste de provocações que os lutadores passam  nos  momentos  de  “divulgação”  da  luta.  O  teste  consiste  em  um  evento  aberto  ao público em que os dois lutadores se encontram e trocam provocações, insultos e promessas de que alcançarão a vitória sobre seu oponente. Seus rostos ficam bem próximos, ambos os lutadores performando a possibilidade de uma agressão. Tal evento acaba despertando no público uma atmosfera de que a qualquer momento um ataque corporal  poderá  acontecer  fora  do  local  apropriado.  O  teste  costuma  acontecer  de  “forma simulada” sendo esperado que nada saia do controle, pois a indústria de lutas do MMA mantém todo um conjunto de performances23 aguardadas pelo público, estimulando que cada luta pareça um momento único no imaginário dos fãs. No entanto, como mostra bem a fala do narrador do filme quando conta o encontro entre Jones e Cormier, incidentes agressivos e determinantes para a luta, surgiram fazendo com que ela se tornasse “pessoal”, pois no momento do teste um deles rompeu com a “regra” de apenas provocar, agredindo fisicamente seu oponente. O fato de ele ter reagido, mostra que se tornou “pessoal”. Isso é apresentado no filme como uma exceção, sugerindo que o objetivo subentendido e legítimo, não é esse. É nesse sentido que o teste se  torna  “simulado”,  podendo  o  lutador  ganhar  a  fama  de  violento  e  descontrolado  caso  ele  escolha  lutar  com  o  outro  fora  do  momento  e  do  espaço  apropriado.  Goffman (2011) vai falar de algo semelhante ao teste de provocações, que são momentos em  que  “o  jovem  passa  até  desenvolver  uma  capacidade  de  manter  a  compostura”.  Provar que pode manter a compostura, portanto, pode ser entendido como um dos objetivos (senão o principal) desse teste que acontece antes das lutas; considerando o mais forte ou o mais resistente lutador, aquele que conseguiu não ser atingido pelas provocações, ou nos termos de Goffman, manter o aprumo, garantindo que os papeis continuem intactos.

5 O futuro do herói

Por fim, existe ainda um elemento importante na análise do filme que precisa ser colo-cado. Diz respeito a uma projeção do Eu-lutador no futuro. Com o constrangimento da derrota, ele gera uma expectativa de realização da trajetória do herói. Goffman (2011, p. 108) vai dizer que “apesar de não conseguir apresentar um Eu sustentável e coerente nesta ocasião, ele pelo menos está perturbado pelo fato e pode se provar digno em outro momento”.No filme, este elemento aparece principalmente como uma das formas de se resolver o constrangimento, e de fazer uma manutenção do ethos individualista com a expecta-tiva de se cumprir a jornada do herói, dando sentido ao Eu-lutador; ao mesmo tempo que cria um estado de confusão para aqueles que estão impossibilitados de voltar a lutar. Gary Goodridge relata:
Você sempre quer lutar mais, mesmo que já tenha cansado e já tenha quase morrido. Seus pés ardendo, suas mãos imobilizadas. ‘Não, estou bem, não vou parar.’ Lutadores sempre dizem isso porque estão atrás do arco-íris, achando que o Sol vai brilhar. Se durar mais um segundo, você acha que pode vencer. Eu não conseguia parar.
A história de Michael Gaymon (também conhecido como The Joker) é um bom exemplo de como a quebra da expectativa de futuro surge como a quebra da maneira de controlar o constrangimento do presente. Gaymon dedicou a vida ao MMA, e mesmo tendo participado de 22 lutas profissionais, com 39 anos ele nunca chegou ao auge da carreira; o que gerou estados de depressão constantes e comportamentos suicidas. A expectativa de futuro foi interrompida devido a diversas lesões no rosto, o que provocou sua retirada do mercado de lutas. A todo instante suas falas no documentário expressam  um  estado  psicológico  alterado,  onde  ele  mesmo  se  coloca  da  seguinte  maneira: “Estou tentando ser mais otimista por fora. Por dentro, por dentro está uma droga.” Diante da preocupação sobre sua condição financeira, o fato de não poder lutar  aparece  como  principal  motivo  do  seu  estado.  Uma  situação  que  nos  sugere  a  análise de Z. Bauman (2007, p. 31) sobre os efeitos de uma sociedade de consumidores que inclui na dualidade sujeito-objeto a dualidade consumidor-mercadoria, onde o tensionamento existente na relação entre os dois “é oferecida à percepção como inadequação, inconsistência ou imperfeição de uma mercadoria mal escolhida”. Nesse sentido, a quebra das expectativas faz de Gaymon uma mercadoria defeituosa ou imperfeita. Nos termos de Bauman, conforme as estratégias exigidas pelo consumismo dirigido para o mercado, torna-se necessária sua troca imediata.

A fala final do filme, – que é construída com imagens que reforçam o imaginário individualista,  mostrando  lutadores  se  exercitando  de  forma  solitária  e  com  um  fundo  musical  que  sugere  introspecção,  inspiração  e  heroísmo  –  dita  por  Michael  Gaymon  também é interessante:
Para os que arriscam o corpo e a mente em nome do orgulho da glória e do entretenimento, não importa se a jornada é estável, ou se o corpo e a mente os deixam na mão. Eles sempre estão lutando. Para esses homens e mulheres, nenhuma derrota os faz desistir. Nenhum juiz pode parar a luta, nenhum córner pode mostrar o caminho. Precisam achar a força para continuar dentro deles próprios. E por isso acompanhamos suas histórias tão atentamente. Suas vitórias magníficas e derrotas devastadoras. Por um momento podemos abandonar nossas preocupações e testemunhar o triunfo de outros.
A indignação que surge nos lutadores não está relacionada à derrota do ringue, mas ao  que  essa  derrota  provoca  no  Eu-lutador,  construído  em  bases  onde  o  indivíduo  deve agir sozinho, vencer sempre e cumprir sua trajetória de forma a se tornar a gran-de confirmação de que ela é real, que ela deve acontecer de fato. Na trajetória do herói não existe a possibilidade da derrota; portanto, o constrangimento da derrota provoca indignação porque nega a existência do Eu-lutador. Derrotado, seja por outro lutador, pelas condições físicas ou psicológicas, ele teve sua trajetória interrompida.

6 Considerações finais

Este artigo apresentou um breve apanhado de elementos que aparecem no filme O Espetáculo da Dor, analisando impressões da realidade vivida pelos lutadores. Inicialmente foi exposto um pouco sobre o contexto do filme e das lutas de MMA, em seguida falei da importância de não tratarmos as informações do filme como verdades irrefutáveis, mas como aspectos de um campo que deseja ser visto e interpretado daquela maneira. Em seguida foi elaborada a construção do Eu-lutador, unindo os valores do individualismo de Gilberto Velho à concepção da trajetória do herói de Campbell. A explicação de Velho ajudou a entender o surgimento do individualismo a partir do contexto das grandes metrópoles. Assim, Eu-lutador é um termo que utilizo aqui para sintetizar uma construção narrativa e um olhar que o lutador tem da própria trajetória. Esse olhar sobre si é constante no filme e a quebra da expectativa de realização des-se Eu-lutador, no momento da derrota do ringue, é que provoca o constrangimento. Desde o momento que esse Eu é projetado na forma de compreender o universo das lutas, oferecendo assim um motivo ao lutador para continuar participando dos campeonatos, ele precisa existir a qualquer custo, o que faz das vitórias alcançadas no ringue um motivo secundário, mas necessário para manter esse Eu vivo. Ou seja, a vitória no ringue  é  necessária  para  consolidar  a  verdadeira  vitória,  a  realização  da  expectativa  “com perfeição”, a realização da própria trajetória do herói.

Todo  esse  dilema,  essa  busca  dos  lutadores  de  apresentarem  suas  histórias  dentro  da perspectiva do Eu-lutador, aparece como questão principal na narrativa do documentário. A partir do momento que essa perspectiva é tida como leitura padrão das histórias de vida apresentadas no universo das lutas, o que o documentário faz é tentar nos convencer, através da exposição de emoções específicas como raiva, medo, decepção, etc., de como cada lutador realiza tal trajetória, mostrando os que conseguiram e aqueles que ainda estão por tentar realiza- la. Nesse sentido, a fala final do filme citada anteriormente é bem emblemática, ela mostra que os lutadores não consideram a desistência, sempre precisam da vitória; ou seja, eles sempre precisam realizar sua trajetória para estarem realizados como vencedores.
Os aspectos do individualismo no Eu-lutador, que surgem como justificativas para a manutenção da trajetória do herói, certamente não relatam com profundidade outros desafios que seriam “irrelevantes” do ponto de vista dessa trajetória; ou seja, desafios onde  a  resolução  não  passa  por  questões  individuais,  mas  sim  estruturais  da  sociedade. O filme, por exemplo, aborda a questão de gênero de forma tímida e coloca o problema como sendo apenas do universo feminino. Questões como diferença de raça e classe social nem mesmo são colocadas como uma variável importante na história de vida dos lutadores. A representação do evento é feita apenas dentro dos Estados Unidos, mesmo os organizadores definindo-o como um esporte globalizado. Os lutadores  de  outra  nacionalidade,  no  documentário,  são  tratados  como  estadunidenses,  apagando qualquer contextualização que ponha em risco os valores do Eu- lutador; ou seja, qualquer problema que ponha em risco o individualismo que sustenta as narrativas da trajetória do herói, é ocultado. Nesse sentido, eu chamo atenção para o que foi dito no início do artigo, sobre a escolha das narrativas apresentadas no documentário. Elas acontecem de tal forma que, muitas das vezes, o mais relevante de se observar não é apenas o que foi dito e como foi dito, mas, sobretudo, o que ficou de fora no momento da construção do roteiro, fazendo com que os dramas apresentados sejam os dramas “permitidos” porque corroboram com a imagem do Eu-lutador e sua trajetória, a trajetória entendida como legítima. Tudo isso em detrimento de outros dramas, que poderiam até mesmo subverter a lógica dos valores compartilhados pelos que produzem e participam do evento; desconstruindo assim o motivo principal que faz com que os lutadores continuem buscando sua realização nas lutas de forma incessante.

Notas

1 O filme ficou em exibição pela plataforma de streaming Netflix até fevereiro de 2020. A Netflix é atualmente no Brasil uma das mais populares plataformas de streaming. Atuando desde 2010, ela possui custo relativamente aces-sível (em torno de 25,90 reais) para aqueles que têm acesso à internet de banda larga.

2 Endeavor é uma empresa do tipo holding, ou seja, sua atividade principal é deter participação acionária em uma ou mais empresas. De forma majoritária ela detém direitos sobre marcas, imóveis, direitos autorais, etc. Em 2021 a empresa se tornou de capital aberto e agora participa da bolsa de valores.

3 Sebastiaan “Bas” Rutten é um ex-lutador de artes marciais mistas e Kickboxer. Ele foi campeão do peso-pesado do UFC e ganhou o título King of Pancrase em 1993, 1995 e 1996.

4 Pancrácio foi uma antiga arte marcial e um antigo esporte de combate sem armas, que segundo a mitologia grega teve início com os heróis Héracles e Teseu.

5 A ideia de campo que utilizo aqui é no mesmo sentido que Bourdieu (1996, p. 256), como um espaço simbólico específico para orientar relações próprias, pautadas por regras específicas e um consenso mínimo sobre essas re-gras, com graus de codificação que determinam como o “jogo” deve funcionar e quem poderá participar.

6 A ideia do homem de Durkheim é compreendida a partir da sua concepção de fato social, consistindo em “representações e ações” produzidas por muitas pessoas, e não individualmente. Ver: As Regras do Método Sociológico (DURKHEIM. , 2007) e Sociologia e Filosofia (DURKHEIM, 1970).

7 Archer (2012) atribui ao iluminismo a base para o surgimento do homem da modernidade, por isso a base da sociedade estadunidense.

8 Jonathan Dwight Jones, mais conhecido como Jon Jones, é um lutador de MMA estadunidense, bicampeão meio- pesado do UFC em 2018 e 2011.

9 Rashad Evans é um lutador de MMA, hoje ex-campeão do UFC da categoria meiopesado. Sua última vitória foi contra Chael Sonnen em 2013.

10 Segundo Alfred Gell (2018, p. 47) “a agência social pode ser exercida em relação às ‘coisas’, assim como pelas ‘coisas’”, portanto na produção do filme tanto quanto na participação, há uma agência envolvida que, apesar de não ser o foco de estudo aqui, não deve ser desconsiderada durante a leitura.

11 Ver Max Weber (2007) em A ética protestante e o espírito do capitalismo.

12 Sara McMann é uma estadunidense ex-lutadora de wrestling no estilo-livre - medalhista nos jogos olímpicos, campeonato mundial e jogos panamericanos - e atualmente é lutadora de MMA.

13 Michelle E. Waterson é uma lutadora estadunidense de artes marciais mistas que atualmente compete no peso- palha do Ultimate Fighting Championship.

14 Angela Lee é uma lutadora de artes marciais mistas singapurense nascida no Canadá. Em 2015 estreou no MMA profissional pelo ONE Fighting Championship onde é a atual detentora do cinturão peso átomo.

15 Monomito é um conceito de jornada cíclica presente em mitos, conforme o antropólogo Joseph Campbell. O termo aparece pela primeira vez em 1949, no livro The Hero with a Thousand Faces (CAMPBELL, 1949). Ver também (BRANDÃO, 1987).

16 É comum na lógica da trajetória do herói, ou monomito (CAMPBELL, 1949), o começo da história em lugares simples onde existe o anonimato completo do personagem. No entanto, nada indica que tais lutas sejam, além de clandestinas, anônimas. Esse anonimato está na fala do entrevistado, está em como ele se vê quando atua em lutas clandestinas, ele é anônimo dentro da lógica da trajetória do herói.

17 No filme não há nenhuma especificidade sobre o termo “reserva indígena”. A utilização no texto, portanto, foi para chamar atenção à sua referenciação como um ambiente clandestino.

18 O fato de o herói existir unicamente dela não elimina o aspecto sociológico de que a sua trajetória só é entendida como valor somente quando reconhecida pela sociedade.

19 Dentre as etapas apresentadas por Andrea Nero (2014), quando estudou a influência do cinema no aprendizado utilizando a jornada do herói de Campbell e o filme O Equilibrista (PETIT, 2009), a etapa seis seguindo a linha de (MARTINEZ, 2008) sugere que a personagem é o único capaz de superar os desafios da trajetória, é o momento em que “você percebe que só depende de você mesmo” (NERO, 2014, p. 7); e quando, na análise do filme propriamente, ela aponta na etapa nove a absorção de “poderes” adquiridos depois de um contato com a morte, “onde o homem comum desaparece pelo meio de uma morte simbólica para o surgimento do herói” (NERO, 2014, p. 10).

20 O termo “Forçado” não significa que os lutadores foram obrigados, mas representa uma disputa programada, num ambiente onde o encontro não acontece de forma tão fácil (VELHO, 2000).

21 Michael Chandler Jr. é um lutador estadunidense de artes marciais mistas e atualmente possui 22 vitórias, sendo a mais recente contra Dan Hooker em 2021.


22 Gary Goodridge Henry, apelidado de “Big Daddy” é um antigo e famoso lutador de pesos pesados de Kickboxing e MMA de dupla nacionalidade: nasceu em Trinidad e Tobago e naturalizou-se Canadense. Este esteve presente nos primeiros eventos do UFC e do extinto Pride e participou em muitos torneios do K-1 World Grand Prix.

23 A palavra “performance” deve ser compreendida no seu sentido antropológico, considerando as definições de autores bases do campo como o Richard Bauman (1978), Victor Turner (1987), Judith Butler (2003), Erving Goffman (2011) e Richard Schechner (2013); nesse, levando considerando estudos sobre arte verbal; dentre outros. Dentre as performances construídas pela indústria do MMA, além do duelo citado, os momentos anteriores à luta são cons-truídos com a fala do narrador buscando estimular a emoção do público com a apresentação dos lutadores, os pró-prios entram no ambiente onde será realizado a luta de forma a exibir seus dotes, com músicas e poses para fotos, além do processo de preparo do lutador (como a aplicação de vaselina no rosto e no queixo, seguido de formas de verificação de irregularidades). Tudo isso acontece enquanto performances são exibidas na transmissão televisiva. São apresentadas imagens em tom cinematográfico de momentos do treino dos lutadores, complementadas pelos narradores falando constantemente sobre suas trajetórias; tudo até o exato momento em que a luta inicia.

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